O nascimento dos Biogramas

Estive trabalhando nos biogramas por décadas já. Posso dizer que eles são a síntese do meu desenho.

Como muitas crianças, eu tinha uma certa compulsão por desenhar enquanto as aulas de toda a sorte de matérias aconteciam em minha frente na escola. Como uma criança-desenhista, eu tinha meus temas de preferência: soldados, guerras, armas, ‘plantas técnicas’ de mansões impossíveis (vista aérea) e, por vezes, a natureza em sua versão idílica: prados e riachos límpidos e o refulgente Sol no canto superior da página - sol cujo qual depois de meu ‘encontro’ com Georges Méliès (ainda em tenra idade) passou a apresentar um rosto que por vezes era simpático, por outras, feroz.

Fui estudando e aperfeiçoando o meu traço até meus 10 ou 11 anos de idade. O fato é que neste período algo surgiu em minha vida que mudou minha percepção sobre desenho e sobre arte para sempre: a impressora.

Meu pai havia recentemente adquirido uma impressora para a nossa casa. Junto com a chegada daquela bela máquina, chegou também uma ideia que “freiou“ meus avanços técnicos no desenho: não fazia mais sentido algum buscar o realismo ou o surrealismo através do desenho (ou mesmo na pintura) dado o simples fato de que já existiam ao dispor de qualquer pessoa aqueles fantásticos dispositivos de reprodução chamados impressoras. O surgimento das impressoras me ‘aterrorizaram’ talvez ainda mais do que as próprias telas, dado o fato de que a reprodutibilidade da imagem no plano físico tratava de uma revolução radical na interação entre o ‘plano virtual’ e o ‘plano físico’*.

Um ‘ponto zero’ na vida das imagens.

Mas para onde a coisa avançaria? A tela, claro… a tela já era por si só uma impressora-viva, imprimindo imagens em nossas retinas a todo segundo - e eu sabia que isso iria avançar ainda mais e mais ao ponto de ‘chegar em nossos corpos’. Na época, isso foi uma epifania. Usei então a própria recém-chegada impressora para imprimir uma mandala, uma monalisa e o mictório de Duchamp. Colei em meu mural. Ficaram comigo por anos, como uma espécie de lembrança de que a vida das imagens seria outra a partir daquele ponto do impressão.

Dois foram os efeitos da chegada desse novo aparelho-paradigma na minha, ainda infantil, cabeça: o primeiro é que eu me lancei às mídias digitais: passei a me interessar por filmes, videos e também em poder produzir imagens ainda não vistas com os efeitos do computador. O segundo efeito foi que parei de buscar a perfeição ou o realismo no desenho. Do desenho, a única coisa que ficou foi o prazer do rastro no papel. Em outras palavras, a libido do gesto no espaço (na folha, no ar).

A terceira vulva.

Fazia gestos e mais gestos em folhas e outras superfícies. O que surgia alio para mim era altamente sensual, cheio de sentido. Lembro que uma forma me chamou a atenção e chamei ela de ‘signo fundamental da beleza’.

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A partir do signo fundamental da beleza eu poderia derivar. O conceito de ‘line of flight’ de Deleuze e Guatari me informaram sobre a possibilidade de derivações em arco. Pontos de fuga ‘impossíveis’ pareciam desenhar um campo que de alguma forma ‘brigava’ com o plano cartesiano modernista.

A gênese da biogramaturgia.

A partir daí, nunca mais parei de desenhar isso. Quase diariamente, passei a praticar estas quase-formas como uma quase-terapia. Algum tempo depois, passei a chamar estes desenhos de ‘biogramas’.

Desde então nunca mais busquei o avanço técnico clássico para meu desenho. Ao invés disso, comecei a buscar uma espécie de síntese. Muitos anos depois, Bernardo Paz, o criador do Inhotim, me falou algo que ressoou comigo e de alguma forma com os ‘biogramas‘: “a simplicidade é a sofisticação máxima”.

Obviamente sei que esta frase não é originalmente dele, alguns atribuem a Leonardo da Vinci. Mas o curioso disso é que nenhum destes caras são exatamente simples. Seja Bernardo ou Da Vinci, todos me parecem personas absolutamente complexas. Complexas ao ponto de, ao menos, perceberem a importância e a primazia da simplicidade.

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Uma diferença no Salão da Turbina

Uma diferença no Salão da Turbina

Uma diferença no Salão da Turbina.

No ano de 2012 estive em Londres e fiz uma visita ao Tate Modern. Depois de explorar os andares do museu, fui descansar de minhas andanças sentando-me por alguns instantes no Turbine Hall que, diferente de outras ocasiões, não apresentava nenhuma instalação ou escultura como era de costume - ou, pelo menos, assim me parecia.

Enquanto descansava apreciando o movimento randômico das pessoas pelo grande salão, algo inusitado passou a acontecer: uma grande parte das pessoas que estavam naquele zig-zag incessante começaram a se ordenar e se mover de modo coordenado. Quando percebi esse padrão que se formava, minha atenção se transformou totalmente. Como diz Gregory Bateson: a informação é a diferença que faz diferença - e uma informação tem a capacidade de modificar por completo nossa forma de atenção e percepção da realidade. Esse é o efeito de uma verdadeira Informação - e era isso o que se passava comigo naquele instante, uma expansão de percepção pois o que ocorria ali gerava uma diferença genuína. O fenômeno que se apresentava e se desdobrava diante de mim certamente se tratava de uma grande diferença e, por isso, conseguia gerar uma diferença interior nas minhas estruturas neuronais, uma diferença relevante.

A informação é a diferença que faz diferença.
— Gregory Bateson


Algo estava realmente acontecendo no salão. Quando dei por mim já estava envolvido num coral humano que, por vezes, soava em uníssono e, em outros momentos, se deformava em um riacho cacofônico onde caóticas situações e histórias se sobrepunham umas às outras. Depois de longos e oníricos minutos, tudo aquilo se desmontou diante dos meus olhos e dos olhos dos espectadores do processo. O grupo nuclear que havia começado aquela “baderna” diluiu-se nas similitudes do cotidiano e o zig-zag impessoal típico da esfera pública voltou à sua regularidade, sem mais diferenças relevantes, sem mais nova Informação.

These Associations, 2012 - Tate Modern / Turbine Hall

These Associations, 2012 - Tate Modern / Turbine Hall

O Leão de Ouro da Bienal de Veneza.

Um ano depois fiquei sabendo que aquela situação peculiar vivida por mim tratava-se, de fato, de uma obra de arte. A obra chamava-seThese Associations e fora construída pelo artista Tino Sehgal - nomeado ao prêmio Turner em 2013. Descobri esta peça não porque fui atrás de informações sobre o acontecimento, mas porque na Bienal de Veneza de 2013 me deparei com duas situações similares que pertenciam a Sehgal que, por sinal, naquele ano ganhou o Leão de Ouro da Bienal com suas “situações construídas”. 

Olafur Elliason, The Weather Project, 2003 - Tate Modern / Turbine Hall

Olafur Elliason, The Weather Project, 2003 - Tate Modern / Turbine Hall

A peça referida acima fora, de fato, desenvolvida especificamente para ser apresentada no Turbine Hall, sendo comissionada pelo projeto Unilever Series que, em outras ocasiões, havia sido a plataforma responsável por gerar naquele mesmo espaço poderosas imagens atuais da arte contemporânea, tais como o icônico “sol” de Olafur Eliasson ou a furiosa rachadura de Doris Salcedo que rasgou de fora a fora o chão do salão, além de tantas outras obras físicas de outros renomados artistas. Mas essa obra de Sehgal era diferente. Ela não gerava imagens que pudessem ser mediadas. Nada de gritante esteticamente estava exposto ou capaz de ser capturado por um registro que não a própria vivência dos espectadores/participantes. 

Situação construída por Tino Sehgal para museu nos Estados Unidos.

Situação construída por Tino Sehgal para museu nos Estados Unidos.

Aquela experiência não foi apenas uma diferença que fez a diferença em minha vida, mas ouso dizer que Tino Sehgal é uma diferença dentro da arte contemporânea em si. Seu radicalismo em trabalhar com pessoas comuns como base de seu “suporte” negando-se, inclusive, a mediar a relação destas pessoas que ele seleciona e treina através da teatralidade ou mesmo de uma indumentária proposital, o colocam numa posição de mago transformador do cotidiano e das relações. Sehgal em suas “situações construídas”, dá continuidade à proposta de diferenciação dos Situacionistas do século XX, criando um processo contínuo de diferenciação que faz a diferença em nossa forma de receber, sentir e, mesmo, interpretar a arte.

A “situação construída” é tão fugidia quanto o tempo. Como escreve Suely Rolnik em seu texto “Memória do corpo contamina museu”:

O objeto se descoisifica para voltar a ser um campo de forças vivas que afetam o mundo e são por ele afetadas, promovendo um processo contínuo de diferenciação.

A obra de Sehgal é um processo contínuo de diferenciação que, como um segredo sussurrado ao nosso ouvido, faz a diferença para nós e para o sistema da arte contemporânea.

Teorema do Rastro: da caverna à ciberdança.

Teorema do Rastro: da caverna à ciberdança.

Apesar do tônus deste texto se apresentar pretensioso, não é essa a intenção deste pequeno “proto-whitepaper”. Qualquer rigor acadêmico está sendo deixado de lado agora para que, sob a luz de uma certa ingenuidade, possa expor meus pontos que em grande parte tem como interesse focal a essência do desenho. Não somente a essência como origem mas também, de modo ainda mais especial, a essência como destino.

O teorema original do desenho.

O desenho de Blombos, na África do Sul, é atualmente o desenho mais antigo da humanidade conhecida. Datando de cerca de 70.000 anos atrás,  é difícil dizer que qualquer outro dispositivo humano possa ser percebido como mais ancestral do que o desenho. A fala ou a música, fenômenos talvez de idade ainda maiores, não possuem registros materiais e são organicamente pertencentes  ao corpo, podendo ser compreendidos não como dispositivos humanos mas, antes, como formas de comunicação intrínsecas ao nosso projeto biológico como espécie. 

De uma forma crua e simples desde sua expressão primeva até suas mais novas expressões dentro da cultura humana, o desenho pode se reduzir ao seguinte teorema:

“O desenho é a memória do rastro em uma superfície.”

Independentemente dos pigmentos ou ferramentas das quais nos utilizemos para realizar este procedimento, o registro de um rastro pode criar uma infinidade de imagens cujas quais podem se desdobrar ou evoluir dentro da cultura de inúmeras formas, dado o seu caráter de perenidade e permanência. No entanto, o desenho como registro ou o desenho como projeto dependem do procedimento do rastro na superfície. Por conta disso, entendo esta constatação como uma fórmula fundamental  do desenho e, por isso, uma das formas fundamentais da arte.

Dada esta constatação, passei a explorar uma forma de desenho muito particular. Esta forma consiste em uma investigação que já dura 10 anos acerca da linha na superfície. Desta obsessiva e singela experimentação nasceram o que chamo de Biogramas. 

O desafio de Entler e um novo teorema do desenho.

Colocar uma imagem (ou um banco de imagens) distantes de nosso universo artístico ao lado dos Biogramas por um mês e receber o que surge dessa relação. Eis o desafio proposto, incialmente, por Ronaldo Entler durante seu módulo na pós-graduação em Práticas Artísticas Contemporâneas na FAAP.

Depois de marinar o desenho de dois biogramas ao lado das imagens de dois livros por quase um mês muitas coisas aconteceram no meu processo psíquico em relação aos biogramas em si. Falarei sobre alguns destes novos processos de entendimento sobre a existência, a função e a relação dos biogramas no mundo, mas coloco aqui de modo bem direto a mudança de eixo central, ou melhor, a expansão do eixo central do meu entendimento do que é o desenho.  Posso dizer que o teorema do desenho que, inclusive, deu origem à minha necessidade de passar a desenhar os biogramas se transformou do “desenho como a memória do rastro na superfície para: “desenho é dança.”

Forçar a relação destas linhas na superfície com corpos colocados em cenas me fez expandir o entendimento, ao menos, de um dos elementos do teorema fundamental do desenho. A ideia de superfície deu lugar à ideia de espaço. Com os avanços da tecnologia digital, cumprir essa tarefa tornou-se algo relativamente simples, mesmo que a exploração do desenho como memória do rastro no espaço esteja ainda em seus primórdios de expressão. Sua forma mais corriqueira, por hora, dá-se dentro do que os tecnocratas chamam de Realidade Aumentada. 

Pesquisando essa ideia do desenho no espaço me deparei com um aplicativo chamado Just a Line (apenas uma linha) que me pareceu converter bem este pensamento e principalmente tornar-se uma ferramenta útil aos Biogramas na esfera do virtual - dado o fato de que os próprios Biogramas são desenhados a partir de uma única linha. Isso conferiu, pela primeira vez, tridimensionalidade para os Biogramas e abriu toda uma nova perspectiva não apenas de produção mas de processo para essa linha de meu trabalho. A descoberta foi tão reveladora durante o processo que eu expandi o teorema original para: o desenho é a memória do rastro no espaço.

Ouso aqui apontar um teorema ainda mais radical e que, certamente, cria um brilho novo para todo o futuro das produções dos Biogramas. Um novo portal se abre e seu campo de exploração pode ser resumir neste novo teorema do desenho que em termos de enunciado fica mais ou menos assim:

“O Desenho é a memória da dança no espaço.”

- João Mognon

God Save McQueen!

God Save McQueen!

É notório que Alexander McQueen tenha sido um dos maiores estilistas de todos os tempos. Mas não é tão notório que Alexander McQueen tenha sido um dos maiores artistas contemporâneos de sua geração. Sua profusão inventiva é incomparável no seio da moda, mas também é vasta e profunda o suficiente para penetrar os meandros da arte. Suspeito, inclusive, que seu suicí­dio precoce deu-se justamente por seu denso universo criativo. Ele mesmo, por diversas vezes, em demonstrações perspicazes de auto-crítica, comentava que o seu cérebro precisava de espaço.

O olhar macabro e definitivo para um passado que é consumido e consumado na Coleção de Outono-Inverno 2009. McQueen conscientemente fecha e sela o ciclo de uma vida de trabalho no limiar entre a arte e a moda.

O olhar macabro e definitivo para um passado que é consumido e consumado na Coleção de Outono-Inverno 2009. McQueen conscientemente fecha e sela o ciclo de uma vida de trabalho no limiar entre a arte e a moda.

Espaço é o que ele parece buscar quando divide a sua carreira finalizando sua fase mais densa e prolífica com o desfile de Outono-Inverno de 2009 onde faz uma reflexão de toda sua carreira até ali evocando suas principais temáticas numa fogueira imaginária onde alguns dos artefatos cênicos dos seus principais desfiles da década anterior se encontram amontoados como num grande ferro-velho apocalíptico. Apocalipse que estende-se no tom soturno de um desfile lúgubre com silhuetas que se aproximam mais de ninhos e caixões do que de corpos humanos. Morte ou renascimento? O tempo confirmou essa resposta.

Talvez a arte pós-contemporânea tenha seu início justamente por alí, entre os anos 90 e 2000, aos arredores de Alexander McQueen.
O final do desfile da Coleção primavera/verão de 1999 foi parte performance, parte show. Para McQueen, foi história da arte.

O final do desfile da Coleção primavera/verão de 1999 foi parte performance, parte show. Para McQueen, foi história da arte.

McQueen foi a corporificação do ápice do consumo corporativo dos anos 90, a materialização de uma crítica caustica e poderosa dentro do cruel sistema da moda que bombeia o sangue da renovação frenética no coração do capitalismo. Filho dos anos 90, garoto prodígio que atou as mãos da moda com as mão da arte McQueen é o Duchamp de nosso tempo. Ao mesmo passo que é também um inesperado seguimento da tradição Warholiana, pois transcende o território da arte em si, nascendo por completo em outro solo aparte que é o coração funcional do sistema da alta moda.

Seis meses depois do “velório” de McQueen por ele mesmo o artista renasce no emblemático desfile primavera / verão de 2010 evocando um futuro transumano de conexão com a geometria naturalmente sagrada da biologia simétrica. Vários eixos de quebra que mostram por inteiro o último ato de McQueen. Ali, como a própria década de 90, distantes já por uma década, McQueen se dissolve no caldeirão da utopia tecnobiológica que nos pervade até os dias de hoje e estará a nos envolver cada vez mais.

Plato’s Atlantis: a última e visionária Coleção de Primavera-Verão 2010. A presença e referência à tecnologia da informação e à biotecnologia ao mesmo tempo é como uma flecha precisa com a qual o gênio de McQueen aponta para um futuro que 10 anos de…

Plato’s Atlantis: a última e visionária Coleção de Primavera-Verão 2010. A presença e referência à tecnologia da informação e à biotecnologia ao mesmo tempo é como uma flecha precisa com a qual o gênio de McQueen aponta para um futuro que 10 anos depois se tornou o nosso presente.

Como se não pudesse mais viver em um mundo de colagens estéticas que ora sobem aos aposentos superiores do clássico e oras descem às masmorras da falta de sentido, McQueen parece dissolver-se na contemporaneidade que é ele mesmo, deixando para nós em seu último desfile antes da morte uma pista com ares de destino para a nova humanidade que emerge.

Sarah Burton, fiel escudeira de McQueen, continua seu legado mesmo depois de sua morte. Como primeiro gesto de Burton dentro daquilo que se torna uma nova maison contemporânea, ela finaliza a última coleção tocada por McQueen para mostrá-la às cabeças da moda e da cultura selecionadas a dedo naquele que foi um desfile privado de proporções pequenas, mas de emoções profundas. Angels and Demons, desfile protocolar como o enredo de um velório, parece coroar de maneira literal e direta a vida interior de Alexander McQueen. Depois do suspiro onírico do futuro com sua coleção Platos Atlantis, em seu último gesto voltamos ao passado como uma forma de homenagem ou agradecimento à sólida base clássica que formou aquele que é um dos grandes nomes dos anais da história da moda e raro elo criador e criativo entre arte e mercado, entre disrupção e classicismo. Além de estilista, McQueen é um artista de vanguarda em seu próprio tempo.

Angels and Demons: coleção Inverno/Verão 2010.

Angels and Demons: coleção Inverno/Verão 2010.

Os últimos trabalhos de Alexander McQueen.

Os últimos trabalhos de Alexander McQueen.

Alexander McQueen é um gênio obtuso que há de ser estudado, relido e redefinido. Pois em sua carreira quase não há ponto sem nó para que ele se configure também como uma das pedras fundamentais daquilo que podemos chamar de arte pós-contemporânea - aquele lugar que por falta de definições dentro do solo da contemporaneidade nos incomoda. McQueen mora aí.

Mas é justo nessa falta de definição, nesse transbordamento entre áreas de saber, indústrias ou bolsões culturais que podemos sentir a autenticidade de nosso tempo, que rui e derrete estruturas e realidades com o caráter líquido. A liquidez que durante toda a vida fez questão de nos lembrar Zygmunt Bauman. Talvez a arte pós-contemporânea tenha seu início justamente por alí, entre os anos 90 e 2000, aos arredores de Alexander McQueen.

Para a moda, McQueen foi um ponto fora da curva no gráfico do mercado do conceito. Mas para a arte, McQueen foi uma nova curva fora do gráfico. Algo que a arte de tempos em tempos necessita para reafirmar talvez uma de suas únicas funções evidentes: a manutenção do espectro da liberdade no sistema. McQueen foi um gênio, uma ponte definitiva para que a moda transbordasse de si mesma e que a arte, mais uma vez, transbordasse das paredes institucionais que a prendem - como o fez Duchamp, como o fez Warhol e como o fez McQueen.

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God Save McQueen!

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Poema 1 - Hoje é Anjo Yagé